sexta-feira, 28 de junho de 2013

Oito meses de ACA


Quando entrei na ACA, queria fazer algo diferente, queria conhecer a parte dos papéis numa Associação, não queria contactar com pessoas, apenas os papéis me interessavam... Dizia que admirava muito quem trabalhava com as pessoas sem-abrigo mas que eu jamais o iria conseguir fazer... Mal sabia eu que ao final de poucos meses estaria quase a implorar ao coordenador para me aceitar no projecto.
Sem perceber fui mudando, fui adquirindo um novo pedacinho na minha identidade, já não era aquela pessoa que achava que resolvia tudo com dinheiro, que passava por alguém na rua, dava uma moeda e nem sequer para cara dessa pessoa olhava... A ideia de alguma vez perder a vida confortável que tinha aterrorizava-me de tal forma, que vê-los tornaria o meu medo real... Outros dias o medo era tão grande que as lágrimas me caíam pelo rosto, e por mais que aqueles que me rodeavam me dissessem que muitas daquelas pessoas faziam uma certa chantagem psicológica eu entravam em pânico com toda aquela situação. 
O escudo que me separava de qualquer desastre humano também foi abalado... No tempo em que trabalhei em jornalismo habituei-me a ver as pessoas como "objectos" passei por situações de extremos em que me choravam ao microfone pois tinham perdido tudo, e eu continuava ali desprovida de sentimentos, ouvia, "massacrava" a ferida com perguntas e vinha-me embora, a partir do momento em que aquilo era notícia esquecia, e nem os corpos de crianças mortas na parte detrás de uma carrinha me fizeram verter uma única lágrima, tudo aquilo estava lá longe. Eu era uma espécie de máquina, depois disso então é que nada me fazia impressão... Por isso achei que iria ser fácil não me envolver nos casos dos nossos amigos de rua, a primeira conversa foi tão fácil, tão mágica e tão inesperada que tudo me pareceu fácil. Ali sob a visão de alguém que mal conhecia, eu falava com uma desconhecida como se já falássemos todos os dias. Depois daquela experiência inesperada a vontade aumentou, e quando veio a carta verde para sair eu pensei que não era precisa muito ciência, afinal era apenas falar. Ouvi as histórias, li os versos, falei do tempo, da novela, do livro, servi chá e bolos, percebi que tinha inúmeros preconceitos... Afinal os meus amigos novos também tomavam banho!
Mas sem perceber a história deles foi ficando, e houve quem entrasse no meu coração, me fizesse ter atitudes que só tenho com grandes amigos, como enfrentar o meu terror a hospitais só para trazer um pouco mais de conforto àquela nova amiga. Comecei então a perceber as palavras de uma voluntária mais velha "há sempre os casos em que te envolves mais... Achas que não, mas vais ver! Identificamos-nos sempre mais com alguém".
Até que um dia abro o jornal, uma notícia sobre pessoas sem-abrigo, li-a... Mas ao contrário do que me acontecia anteriormente, naquele dia as lágrimas quase caíram, senti-me estranha e pela primeira vez em muito tempo as notícias atingiram-me, aquelas pessoas já não eram um "objecto noticioso" eram os meus amigos novos... aquilo não estava "lá longe"e eu sentia um misto de excitação por conhecer a pessoa da fotografia com um misto de tristeza porque não era uma boa notícia... era apenas mais uma notícia de um tipo muito comum nos últimos tempos o "vamos-ouvir-as-histórias-das-vítimas-da-crise". Irónico como no fim desta leitura o que pensava era se estas conversas de algum modo tocaram a vida da jornalista, como tocaram a minha, ou se ela as arrumou no grande arquivo de histórias já contadas...

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